Overdose: um termo "pretensioso" para ocultar a ignorância



Se observarmos o impacto que o termo overdose possui nas sociedades em geral, podemos sugerir que este termo é um dos argumentos mais eficazes para manter, há mais de cinquenta anos, as politicas governamentais proibicionistas. E, também, dar créditos às industrias farmacêuticas que, em parceria com as mídias, introduziram estes viés cognitivos, responsáveis pelas distorções de julgamento.

Em relação às drogas, a mídia sempre dá foco ao crack, cocaína e maconha, dando a impressão de que essas drogas são uma epidemia sem controle. E aproveitam do seu potencial de divulgação, e credibilidade, para "sensacionalizar" e impor o "medo", quando são divulgados casos de mortes acidentais por drogas ilícitas, convencionadas como overdoses, mas sem nenhum intuito de educar ou divulgar dados verdadeiros, mas simplesmente por interesses econômicos.

Assim, ao assumir um tom pessimista e alarmista a respeito das drogas ilícitas, os meios de comunicação muitas vezes deixam de informar que os maiores problemas com drogas em nosso país, ainda são decorrentes do consumo das drogas lícitas e misturas desconhecidas produzidas pelo comércio ilegal, sem nenhuma informação da toxicidade. E com isso, resta aos pais um controle desmedido da vida dos jovens em detrimento de ações muito mais efetivas, como a aproximação, o diálogo, e a educação do cuidado sobre as drogas e potencias riscos de interações ou misturas.

Mas, a importância de revermos o significado do termo "overdose", e discutirmos, vão muito além de leis, proibições e conceitos distorcidos, que alimentam e produzem a mídia, do medo e não da educação. Nunca foi tão urgente e necessário revermos conceitos e sinonímias, e suas definições, para lutarmos por políticas de saúde e direitos de cuidados mais seguros,  baseados em relatos de casos, e análise dos  dados divulgados com responsabilidade, para educar e promover protocolos de cuidados de prevenção. Quantas informações e abordagens de cuidados importantes são negligenciados? Que poderiam servir para elaboração de projetos de cuidados profiláticos, e não de sobrevivência, para overdoses com toxicidade grave das inúmeras misturas de psicoativos disponíveis para uso.

Acontece que, definitivamente,  a mídia não preocupa-se em promover redução de danos, com intuito de educar a população para evitar a ocorrência de novos casos. Pois julga que ninguém deve ou quer saber  sobre: a importância da realização de testes toxicológicos, do conhecimento das doses (letal/toxica) do psicoativo em questão, dos sintomas e cuidados que poderiam ser avaliados e realizados para evitar intoxicação e óbito, exemplo o antídotos e manobras de socorro para grupos químicos individualizados de substancias. Também não existe interesse em buscar, com os envolvidos, a determinação da causa da morte verdadeira, e uma a relação dose/efeito da substancia ou substâncias presentes nos exames toxicológicos.
E, percebemos que, passados mais de cinquenta anos, continuamos apoiando e alimentando a desinformação, com o mesmo discurso sensacionalista e enganoso das frequentes e trágicas overdoses letais. Que apenas mostram o fim de um usuário cronico de drogas, mas não informam os cuidados para não chegar ao mesmo fim, e também informações farmacológicas sobre a toxicidade das substancias, uso individual e interações perigosas.

Então vamos rever os significados...

Overdose é o termo utilizado quando uma pessoa ingere uma dose excessiva de qualquer substância química, como medicamentos/drogas legais, drogas recreacionais e outros. Geralmente, quando ocorre uma overdose, também ocorre uma intoxicação, com vários tipos de sintomas, como perda de consciência, falência de órgãos vitais como coração e pulmões, problemas respiratórios que podem levar ao óbito. A overdose pode ser acidental ou provocada, em casos de suicídios, por exemplo.
Já a interação medicamentos, é definida como uma resposta farmacológica ou clínica à administração de uma combinação de substâncias (drogas terapêuticas ou recreacionais), diferente dos efeitos de dois agentes administrados individualmente. Existem interações medicamentosas do tipo medicamento-medicamento, medicamento-alimento, medicamento-droga recreacional e medicamento-exames laboratoriais. E podem ocorrer com a combinação entre medicamentos sintéticos, fitoterápicos, chás e ervas medicinais.
As interações, benéficas ou maléficas, podem acontecer na combinação química das moléculas, com  formação de metabólitos desconhecidos pelo fígado;  na ação conjunta em receptores ou outros alvos biomoleculares responsáveis pelos efeitos; e como consequência da competição pelas mesmas enzimas do metabolismo e/ou mecanismos de eliminação do organismo.

Como podemos avaliar, pelos conceitos e significado farmacológico dos termos, que a maioria da chamadas "overdoses" que conhecemos pelas mídias, e aprendemos culturalmente, são usadas e abordadas erroneamente, há varias décadas. Para exemplificar esta afirmação, utilizamos alguns casos de pessoas famosas que tem suas biografias publicas, e que são usados pela sociedade como exemplos, quando o assunto é "overdose e consequências letais das drogas".
Michael Jackson, Marilyn Monroe e Elvis Presley são casos clássicos desta desinformação. As trés mortes são, muitas vezes, informadas e sensacionalizadas pela mídia, como "overdoses", entretanto sabe-se pelos testes que foram causadas por "interação farmacológica". Que podem ser produzidas com doses terapêuticas individuais e, quando combinadas, possuem perfil farmacológico para produzir potencialização mútua dos efeitos terapêuticos e/ou indesejáveis (tóxicos) das substâncias consumidas.

Nos três casos, observamos histórias semelhantes, de pessoas com graves problemas psicológicos que utilizavam psicotrópicos para tratar ansiedade, depressão ou fobias, potencializadas pela pressão da fama e mídia.

No caso do Michael Jackson o absurdo chegou ao limite, de seu médico particular aplicar uma mistura, muito perigosa, de benzodiazepínico (lorazepam) com um indutor anestésico potente (propofol), que somente pode ser usado em ambientes hospitalares, pela estreita margem terapêutica. E a interação farmacológica com o benzodiazepínico (bzd) pode ter potencializado, e agravado, a depressão respiratória, levando a sua morte . 

Outro caso polêmico foi o da cantora Amy Winehouse, no qual o uso problemático de psicoativos transformaram a imagem da cantora em um estilo desgrenhado e sua aparência foi amplamente denegrida pelos tabloides sensacionalistas, sempre dando ênfase aos seus problemas com uso abusivo de cocaína e não álcool. Mas testes toxicológicos mostraram que a causa da morte foi relacionada a um consumo exagerado de álcool após um período de abstinência. A quantidade de álcool no sangue, encontrado no sangue da artista, era de 4,16 g/L, cinco vezes maior que o limite legal para se dirigir. E, nesse caso específico, ainda não podemos afirmar se foi uma "overdose" alcoólica ou interação, pois também fazia uso prescrito de benzodiazepínico, para tratar ansiedade relacionada a abstinência do álcool.

Também, um caso divulgado como "overdose de heroína", foi a morte do ator e ganhador do Oscar Philip Seymour Hoffman. Que que mais tarde os exames toxicológicos confirmaram ser uma associação de heroína, cocaína, benzodiazepínicos e anfetaminas. Mas não houve interesse da grande mídia em esclarecer e debater a causa da morte por interação farmacológica. Mas, nesse caso em particular, abriu-se uma polemica discussão nos EUA sobre a necessidade de falarmos sobre redução de danos, para que todos tenham direito de informação e disponibilidade, não hospitalar, de tratamentos terapêuticos disponíveis, usados como antídotos ou antagonistas de substancia psicoativas. Ou seja, se o ator fosse esclarecido previamente, e disponibilizado pelo seu médico um fármaco antagonista de toxicidade por opioides, a Naloxona, este mesmo poderia tê-la autoadministrado, para evitar sua morte. Pois certamente tinha o perfil de risco para que seu médico avaliasse a necessidade de prescrição, e disponibilização,  desse cuidado como medida preventiva, já que a heroína possui riscos potenciais de causar tolerância e aumento gradativo das doses em usuários crônicos. A naloxona é um antidoto opioide poderoso e eficaz, usado em hospitais e ambulatórios de emergências, como antagonista dos receptores opioides.

Os benzodiazepínicos prescritos também possuem antagonista específico, chamado flumazenil, disponível em hospitais e ambulatórios de emergências. E a maioria dos consumidores não tem esta informação e disponibilidade de acesso, para indivíduos que possuem perfil de abuso problemático destes psicoativos, por exemplo. Entretanto, infelizmente não existem antagonistas específicos para a maioria dos psicoativos, como anfetaminas, MDMA e cocaina, e nestes casos o tratamento emergencial é de suporte e sintomático. 

A polemica reside em: se usado para reverter intoxicação por analgésicos como a morfina por exemplo, porque a Naloxona não pode ser usada, pelo usuário de heroína, em caso de sensibilidade individual ou administração de dose excessiva acidental? Se o aspecto ético mais importante é a vida, e o direito de usar todos recursos medico-terapêuticos para preserva-la, independente da enfermidade, causa da morte ou legalidade ou não do agente tóxico.

Acontece que os benzodiazepínicos nunca são os vilões das historias de overdoses, mas com certeza são os potencializadores de efeitos depressores de outros hpnosedativos, como barbitúricos, anestésicos, opioides como a heroína e álcool. O vilão, para grande maioria conservadora, sempre é o psicoativo ilícito em casos de misturas, e sendo assim, supostamente, dispensa a necessidade de abordar cuidados no uso. A cegueira e descaso é constatada quando nós profissionais da saúde sabemos que outras drogas não citadas pela mídia, como fentanil, um analgésico mais tóxico que a morfina, ou a ketamina, um anestésico dissociativo que também apresenta riscos importantes, são consumidos no Brasil e presentes nas misturas ilegais. Que além de omitidos nas noticias de overdoses, não vemos preocupação dos governos em investigar, para alertar e educar os jovens.

Mas não só a mídia, mas todos somos responsáveis pelo crescimento do conhecimento com qualidade. A mídia vende informação que mais interessa vender para os seus leitores. E os leitores preferem notícias de impacto criminal ou de terror, quando o assunto é drogas ilegais, pois temendo a liberdade e falta de controle, preferem guerra e não saber, para manter os tabus e as leis proibicionistas e punitivas. Um exemplo, fui no Google para ter uma ideia do conteúdo educacional das noticias sobre overdoses no Brasil, e constatei o que comentei acima, nas quatro primeiras noticias que apareceram foram: Mulher faz desabafo sobre morte de seu filho por overdose e tenta conscientizar os jovens; Mãe que perdeu filha em overdose quer unir forças com traficantes; Família divulga imagens da filha que ficou em coma após overdose; e Casal sofre overdose ao lado de criança nos EUA; polícia divulga foto

Mas temos que entender que fotos de terror das vitimas mortas, desabafos e histórias tristes de mães das vitimas, ou mostrar a pior consequência da droga no organismo, não vão ser uteis e educativas para combater o tráfico ilegal ou misturas desconhecidas, e mesmo, mudar o cenário dos números de vitimas e frequência de casos. A educação correta e responsável diminui vulnerabilidades para os riscos, por permitir ao cidadão fazer escolhas mais adequadas e inteligentes, baseadas em dados e estatísticas, e não baseadas em mitos, tabus ou convenções criadas e mantidas pela ignorância e o medo.

Se não houver interesse e cobrança do conhecimento verdadeiro das causas de mortes por psicoativos os vilões irão permanecer camuflados no anonimato. Enquanto dezenas de substancias são introduzidas anualmente no comercio ilegal, e a overdose fica como uma denominação universal e absoluta, que dispensa qualquer questionamento ou medidas profiláticas como redução de danos.

E os maiores vilões. diferente do que a mídia estabelece, não são a "overdose" e as "misturas/interações", mas nossos estigmas culturais e crenças populares mantidas por absoluta comodidade. E como consequência dessa ignorância  promovida maldosamente, vamos continuar na mesma, ao invés de aprendermos a utilizar todas ferramentas de cuidados disponíveis, farmacológicos ou não, e que são direitos de todos. As causas verdadeiras dessas fatalidades só podem ser pesquisadas e evitadas, se conhecermos todos aspectos envolvidos na toxicidade individual, e combinada das substancias, e também os aspectos fisiopatológicos do usuário e seu contexto.

Conscientizar é educar!!

* 31/08 - Dia internacional da conscientização e prevenção de overdoses

Vanusa Maria Bispo: neurocientista, professora adjunta de Neuropsicofarmacologia (UDESC). Editora da página Redução de Danos, Portas da Percepção - Coluna e Pscience Blog.

Comentários

  1. Texto que deveria estar no topo das mídias de saúde pública

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    1. Jessica, muito obrigada pelo enorme incentivo ao nosso trabalho. Feito com muita dedicação. amor e respeito ao nossos leitores. Seja bem vinda ao nosso blog...junte-se a nós!!

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