O Kambô Sagrado e a Biopirataria


“Tudo que consumimos para satisfazermos nossas necessidades biológicas ou de bem estar social
vem da natureza, é a matéria prima transformada.” (Lavorato)

Desde a metade da última década, em grandes cidades do Brasil, começou a se difundir o uso da secreção da rã arbórea "Phyllomedusa bicolor", chamada de Kambô. Tradicionalmente usada como revigorante e estimulante para caça por grupos indígenas do sudoeste amazônico (entre eles, Katukina, Yawanawa e Kaxinawá), nos centros urbanos tem havido um duplo interesse pelo kambô: como um “remédio da ciência” – no qual se exaltam suas propriedades bioquímicas – e como um “remédio da alma” – onde o que mais se valoriza é sua “origem indígena”.
"Para os índios, o kambô é um remédio que tira a "panema",  o estado de espírito negativo que causa doenças"
Os índios katukinas, no Acre, são os detentores do conhecimento tradicional da "vacina do sapo", o kambô. A palavra é usada tanto para se referir ao anfíbio "Phyllomedusa bicolor" quanto ao etnofármaco obtido da secreção desse animal. O animal de cor verde brilhante vive principalmente na selva do Estado do Acre, no noroeste do Brasil, mas também pode ser encontrado em outros países amazônicos, como Bolívia, Colômbia, Guiana, Peru e Venezuela. 

O kambô tem se difundido, sobretudo, em clínicas de terapias alternativas e no ambiente das religiões ayahuasqueiras brasileiras, isto é, entre adeptos do Santo Daime e da União do Vegetal e de suas dissidências. Os aplicadores são bastante diversos entre si: índios, seringueiros e ex-seringueiros, terapeutas holísticos, líderes ayahuasqueiros e médicos. 

Tradicionalmente, grupos indígenas brasileiros como os katukinas, kaxinawás e yawanawás, entre outros, usam o kambô em rituais para reforçar o sistema imunológico. Para isso, caçam a rã, que é identificada a partir do seu coaxar característico. Depois, amarrando as quatro extremidades do animal, extraem o veneno coçando suas costas com uma espátula.

A prática da extração do Kambô (Vacina do Sapo)

Embora não seja possível determinar precisamente se a cultura maia clássica utilizava as propriedades psicoativas de sapos ou rãs, é certo que a arte antiga dos maias incluía motivos com cogumelos, sapos e ninféias. Na Mesoamérica foram encontradas pedras, cerâmicas e esculturas com formato de cogumelos e sapos, assim como pilões decorados com motivos de sapos – cuja associação com a chuva e a agricultura é bem estabelecida, explicitando a importância do anfíbio no imaginário desta civilização. Há indícios de que os chineses também conheciam os venenos de sapos: a sua carne era considerada pelos antigos taoístas boa para a longevidade. 

Há, também, relatos da utilização de "veneno de sapo" como ingrediente na fabricação de bombas do século XVII. Na medicina vietnamita tradicional uma espécie de sapo era usada para tratar crianças com febre alta. Os sapos desempenharam, ainda, papel importante na mitologia européia pré-histórica. Foram vinculados a diversos tipos de cogumelos, como pode ser observado através do termo inglês "toadstool" (literalmente “fezes de sapo”, figurativamente “excremento de sapo”), que se refere a cogumelos não comestíveis ou venenosos e é  representado por um sapo de cócoras sobre um cogumelo.

Pesquisas revelaram que a secreção de "Phyllomedusa bicolor" contém substâncias altamente eficazes como a dermorfina e a deltorfina, pertencentes ao grupo dos peptídeos. Estes dois peptídeos eram desconhecidos antes das pesquisas com esses anfíbios. Dermorfina é um potente analgésico e deltorfina, um vasodilatador, pode ser aplicada no tratamento da Isquemia. (falta de circulação sanguínea e oxigênio). 

As pesquisas com substâncias da secreção da rã também revelaram propriedades antibióticas e de fortalecimento do sistema imunológico, e potencial terapêutico no tratamento do mal de Parkinson, Aids, câncer, depressão e outras doenças. A Deltorfina e Dermorfina, na atualidade, já são produzidos sinteticamente.

Mesmo sendo bastante difundido nos centros urbanos do país, o uso do kambô é proibido pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). E, enquanto o Ministério do Meio Ambiente busca desenvolver pesquisas para o desenvolvimento de remédios a partir da secreção deste anfíbio, mais de 20 pedidos de patente da substância já foram feitos por laboratórios estrangeiros, o que denominamos de biopirataria.

Embora a biopirataria seja uma prática que ocorre desde o descobrimento do Brasil, apenas na última década o assunto vem sendo debatido com maior relevância. As possibilidades de exploração ampliaram significativamente, devido a evolução da biotecnologia e na acessibilidade em registrar marcas e patentes em âmbito internacional. Esta situação se defronta com a necessidade de uma legislação mais ampla, assegurando não apenas os recursos naturais, mas também uma maneira de distribuição dos benefícios da comercialização para as sociedades afetadas.

A indústria farmacêutica recentemente retomou o entendimento de que a cura de milhares de enfermidades humanas, podem estar nas substâncias extraídas dos recursos naturais biológicos das florestas tropicais, o que está fazendo com que suas atenções voltem então para o Brasil. O tráfico de animais silvestres é o terceiro maior comércio ilegal do mundo, perdendo apenas para o tráfico de armas e de drogas, estes dois últimos, segundo a Câmara e Senado Federal (2006), se misturam tanto que são encarados como um só. Segundo o Ministério do Meio Ambiente (2005) o tráfico de animais silvestres movimentam cerca de US 10 bilhões ao ano, sendo o Brasil responsável por aproximadamente 10% desse mercado..

Observe-se que o tratamento com venenos ou substancias relativamente tóxicas, encontradas em animais, não é nenhuma novidade na história da medicina e nem nos sistemas etnomédicos, com base nestas práticas, houve adaptações para a medicina moderna. Substâncias extraídas das abelhas (Apis melífera) há muito são utilizadas em preparados da homeopatia e a "ferroada" da própria abelha, viva, é usada na - Apiterapia. Na medicina moderna o veneno das serpentes, a exemplo da jararaca (Bothrops) se derivou o medicamento Captopril (Capoten produzido pela Bristol Meyrs) e da saliva de lagartos como o monstro de gila (Heloderma) pesquisa-se um remédio para diabetes, Recentemente o FDA  (Food and Drug Administration) aprovou dois anticoagulantes para utilização em casos de AVC, retirados da víbora da Malásia e morcego vampiro

No Brasil ocorreram inúmeros casos de biopirataria, tais como o açaí, cupuaçu, pilocarpina (extraído do Jaborandi) e do Kambô por exemplo, onde o país perde a posse dos mesmos e de seus devidos retornos financeiros. Há diversas campanhas e organismos no Brasil buscando coibir a prática de biopirataria, porém a inexistência de uma lei que a regulamenta e puna, torna as medidas com baixa eficiência e resultados. E, sendo o uso do Kambô uma prática proibida no Brasil, é importante ressaltar que, as pesquisas científicas dos potenciais terapêuticos ficam prejudicadas por falta de apoio do governo.




Fontes para leitura:
O veneno de rã que é usado como remédio na Amazônia
Pharmacological data on dermorphins, a new class of potent opioid peptides from amphibian skin
Biopirataria no Brasil: Análise das Questões Político-legais, Técnicas e Sociais Envolvidas


Vanusa Maria Bispo: neurocientista, professora adjunta de neuropsicofarmacologia (UDESC) e editora da página @Redução de Danos e do Pscience Blog

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